A fila, como sempre, pra entrar na última casa era enorme, a diferença era que os cabelos grisalhos que cresciam na sua cabeça e as olheiras de longos anos bem vividos valiam para não ter que enfrentar aquelas poucas dúzias de pessoas enfileiradas na porta. Ao atravessa-las percebeu que realmente o público já não aparentava sua faixa etária. Resumindo, estavam mais estranhos do que o comum.
O segurança de mais de dois metros era novo também, mas o procedimento foi igual. A muralha parou lhe na frente e o encarou. Os olhos do gigante brilharam num vermelho que aterrorizaria qualquer um, mas antes que alguém saísse ferido, o visitante mostrou-lhe uma cicatriz em forma de uma corda de forca no antebraço e entrou sem mais ser perturbado.
As luzes e a música eram mais vividas, dominavam o lugar abarrotado de pessoas de topo tipo e um delicioso aroma de comidas dos antigos balkans. Entre eles existiam jovens, rostos muito antigos, velhas bruxas, alguns seres celestiais, muitos híbridos (deveria ser a nova moda) e, por quê não, um pouco de demônios. Alguns reconheceram o andarilho, comentando entre si, mas nenhum o parou e tão pouco pararam o que faziam (na maioria das vezes dançando ou exibindo seus dons).
Realmente aquilo era o que menos lhe interessava, por isso o caminho do velho homem foi em direção ao bar. O velho Pelugem (adorava o chamar assim,mesmo que o amigo odiasse) ainda era o melhor atendente há décadas. Rapidamente o copo com um doze anos e uma pedra de gelo já estava nas mãos do homem que deu o primeiro trago para depois acender um cigarro amassado.
Pelugem aproximou-se acendendo um outro cigarro e indagou. " Hoje encheu mais do que o normal. T.O deve estar comemorando. Não concorda?"
O velho abriu um leve sorriso sarcástico e coçando a barba olhou o T.O em uma área mais privada sentado em uma grande poltrona de couro, se exibindo com diversas "convidadas" e muita bebida. O filho da puta sabia também festejar além de dominar o comércio sobrenatural.
"Cada um faz o que sabe fazer, Pelugem! Alguns fazem dinheiro com isso, outros como eu, criam histórias para contar."
"E você sempre fazendo questão de se diminuir! Pode não ser mais o melhor caçador de demônios do mundo, mas ainda alguns sabem quem você é. Eu lembro, caso contrário não estava mais aqui...".
O velho gargalhou e encheu mais o copo por conta própria. "Isso é verdade! Quanto tempo faz que não uiva pra lua, seu lobisomem castrado?"
"Treze invernos...ou doze...mas quem está contando, não?". Ambos riram e brindaram uma última dose antes do caçador se adentrar na multidão para ver a mesma e velha banda que se apresentava.
Eram instrumentos pra todos os lados. Alaúde, saz, clarinetes, flauta ney, kaval, violão manouche, rabeca, percussão oriental e contra-baixo! E cada músico tinha seu estilo. Se prestasse atenção em apenas um, conseguiria escutar uma música única, mas se expandisse sua atenção ao restante, aquela música única se misturava com as outras melodias e se transformavam em algo que seu corpo não conseguia ficar parado. Era um transe de hipnose.
Criaturas se entrelaçavam no ritmo do som. Alguns sobrevoando a cabeça dos restantes, mas a maioria se misturava na pista de dança. Para um novato ver monstros, seres folclóricos, anjos, demônios e qualquer porra que fosse aquilo, o traumatizaria para o resto da vida e futuras gerações, mas o velho já tinha uma vida observando, caçando e interagindo com esses seres. Para ele, eram apenas mais corpos esperando um dia falecer, a diferença é que tinham chifres e as vezes soltavam labaredas por partes do corpo. Mas estavam ali, se divertindo, e aproveitando o tempo "livre"! (muitos seres sobrenaturais, por na maioria das vezes terem a aparência diferente do que os humanos, preferiam se empenhar em tarefas onde não eram tão vistos.).
Ao longo das músicas, a quantidade de álcool ingeridas foram aumentando e as memórias do que havia feito ao longo da madrugada foram se apagando. Tinha lembrança de beijar híbridas e demônias, arranjar briga com dois bruxos ciganos que resultaram em algumas maldições proferidas de cada lado e o velho tomando alguns socos antes de ser nocauteado, e uma última lembrança de tomar um destilado verde em meio a gargalhadas e o nariz sangrando na companhia de uma minúscula centenária oriental. Não sabia dizer o que ela era ou de onde tinham vindo, pois realmente não lembrava da senhora dizer uma unica palavra, mas a situação era cômica.
A velhinha de pele mais enrugada e seca do mundo, era desdentada, mas conseguia passar uma alegria e felicidade a cada gargalhada rouca e fina que faziam o bêbado caçador rir como se não houvesse o amanhã. Eram doses atrás de doses.Ele praticamente tombando, e a pequena mulher, virando os copos como água.
Quando acordou, o sol já estava estalando no seu quarto. O corpo exalava um cheiro encardido de suor, álcool, fumaça e mulheres. Em um papel em cima do peito (levemente sujo de seu sangue já seco), um bilhete em um guardanapo rasgado e amassado.
"Fique tranquilo que a conta ficou pro T.O e ele nem percebeu. Só cobrei a saideira porque não ganho pra carregar defunto pra quarto nenhum! Abraços, Pelugem."
O homem sorriu com facilidade pelo bilhete, mas o levantar foi difícil pela ressaca. Olhou, com dor nos olhos, para fora e sentiu o bafo do verão. Tomou algumas doses de café frio e mastigou um pedaço de pão velho com um pedaço de queijo. Encarou-se no espelho, pegou sua garrucha e a colocou no cinto.
A rotina de acender o cigarro e coçar a barba antes de sair de casa foram seguidas pelo seu lema diário: "Hora de criar histórias!".
André Bludeni